quinta-feira, 17 de maio de 2007

O lugar mais cobiçado


A partir do momento em que entram no trem e se acomodam, todas as pessoas tornam-se displicentes. Todas entregam os pensamentos ao acaso, cada qual com sua direção particular, íntima, passam a divagar, pensamentos soltos em algum lugar, apenas com o corpo avolumado em algum dos cantos dos vagões. E no pouco espaço de sempre, os passageiros inventam o seu canto na medida do que é possível, encontram um local para recostar a cabeça e poder soltar a mente.

Quem senta tem o privilégio de não precisar se encaixar em cantos, apenas adaptar as pernas dobradas em meio às pernas esticadas daqueles que vão em pé, apoiados uns nos outros e nos ferros de segurança. Mas todos, sem exceção, nem mesmo os acompanhados, escapam desse feitiço de trem que leva todos a perderem-se dentro de si mesmos, imersos em seus pensamentos. O rumo não, este não se perde, mesmo quando o retorno é brusco, já parado na estação, sempre dá tempo de descer e voltar à rotina das idéias externas, comuns demais.

Felizes são os que conseguem o predileto e sagrado lugar da janela, o mais cobiçado. Mas esses são poucos e para poucos. Só quem chega primeiro ao trem tem a sorte de sentar-se à beira da paisagem, seja ela feia ou bonita. E isso realmente não importa. Os primeiros lugares a serem ocupados são esses, do canto, que oferecem a quem ali se senta a sensação de estar um pouco mais distante dos demais, um pouco mais reservado, um pouco mais sozinho. O passageiro e a janela. O ar que vem lá de fora, o céu sempre disponível, o infinito. A paisagem que acompanha a viagem parece bem mais amiga daqueles que se sentam na janela, mais próxima, tão maior e sugestiva.

E perdido em devaneios fica até mais fácil reparar certos elementos que passam despercebidos na maior parte do tempo em que se está atento. O desenho das nuvens, as cores que se misturam no céu nos finais de tarde, a variação do verde plantado atrás dos muros, a sonolência das cidades e as luzes de fim de dia que brilham na volta para casa. E tudo isso colabora para a viagem interior que acontece nos trens enquanto se aguarda o destino final. Seja para começar ou terminar o dia, é sob esse efeito que os passageiros de trem vão, mesmo quando lêem, mesmo quando dormem, mesmo quando conversam. É sagrado o momento de distração que faz com que todos fiquem com os olhares perdidos, mergulhados em algo que apenas cada um sabe o que é, porquê e como.

Parece que todos os sentidos se desligam, não há barulho, não há odores, não há visão, nada. Nem a disposição ou a preguiça da manhã, muito menos o cansaço da noite, exercem um poder tão profundo nos usuários do trem quanto esse ar oculto que envolve as pessoas lá dentro e é ainda mais intenso perto da janela. Ela é o alento, o cenário, a escapatória para quem ainda tem de esperar pelo destino, mas voa longe, longe, janela afora.

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